quarta-feira, 22 de outubro de 2008

MUDA VIDA DE MENINO PORTADOR DE HIV APÓS DIVULGAÇÃO DE SUA HISTÓRIA


Marcelo Abreu - Correio Braziliense

Desengonçado, ele voa na bicicleta com rodinhas. E some no poeirão da rua de terra. Já nem sente medo de cair. Os amiguinhos da rua ajudaram-no nas primeiras pedaladas. Bobagem. Ele tem superpoderes e, como o Super-Homem, pode voar também. Dentro do barraco miserável, não cabe mais tanta comida. Tem de tudo. A dona daquela casa, com a voz embargada, diz: “Eu chorei, mas foi de felicidade. Nunca vi tanta fartura em minha vida. Não consigo dormir nem comer direito, de tanta alegria. Eu acho que comida nunca mais vai faltar”. A televisão com que o menininho sempre sonhou também chegou. Junto com ela, o DVD. Agora, ele vai assistir ao Homem Aranha. Há uma semana, neste mesmo espaço, uma história começava a ser contada. E começava assim: “Há histórias feitas de coragem. Outras, de compaixão. E há ainda algumas que se cercam de esperança e resistência. Lágrimas e risos...” Agora, essa história ganhou mais um ingrediente. Ela também é feita de esperança. Esperança que faz renascer. Alimenta o corpo e a alma. E tem gosto escancarado de vida.

Há cinco dias, o Correio contou, com exclusividade, a comovente história de Almira da Silva Oliveira, de 57 anos, cabelos grisalhos, desalento diante da vida e sua luta para que Pedro (nome fictício), um menininho de 6 anos, sobreviva (veja fac simile). Pedro tem Aids, herdada da mãe, que, antes de morrer, entregou-o àquela mulher que mal conhecia na Bahia. Viúva, quatro filhos, nove netos, Almira decidiu que Pedro não morreria. Enfrentou a reprovação e o preconceito de boa parte da cidade e partiu. Deixou a distante Pilão Arcado, nos confins baianos, e veio para Brasília atrás de tratamento para o filho que não pariu. Ela não tinha certeza de nada.

Pedro tinha nove meses de vida. Chegou muito mal, nos braços daquela mulher que não tinha referência em Brasília nem onde morar. O menino ficou internado quatro meses no Hospital Regional da Asa Sul (Hras). Recebeu alta. Para onde iriam? Almira voltou à Bahia, vendeu o quase nada que tinha — quatro bodes, a geladeira e uma cama velha. Com o que conseguiu da venda, retornou a Brasília.

Uma médica do Hras, sensibilizada com o drama de Almira, ajudou-a. Deu-lhe R$ 300. A mãe de Pedro contou tudo que tinha. Conseguiu juntar R$ 3 mil. Comprou o lote no Condomínio Del Lago, atrás do Itapoã. Ergueu sua casa humilde de dois cômodos, com paredes no reboco, piso de chão batido e telha de amianto. Foi ali que decidiu que Pedro viveria. Colocou-o na escola. O menino conheceu as letras. Aprendeu a escrever o nome. E começou, mesmo diante de tanta miséria, mesmo diante da falta de comida, a sonhar. Quer ser professor. “Porque professor é inteligente demais. Sabe ler e escrever e sabe também fazer aula de português e matemática”, explica ele.

Almira veio com Pedro para Brasília em busca de tratamento. “Aqui não falta remédio. O governo dá todo mês” ela vibra. Mas aqui também, ao lado do poder, a mãe de Pedro experimentou o pior de seus dramas: a fome. Houve dias em que não teve o que comer. E houve também dias em que ela teve que escolher: ou ela ou ele comeria. Almira não pensava duas vezes: “Por ele eu faria qualquer coisa”. A vizinhança, tão carente quanto, ajudava no que podia. E assim a mulher que tentava salvar a vida daquele menino driblava o próprio drama.

Renascimento
Quinta-feira, 6h. O telefone celular de Almira nunca mais parou de tocar. Veio ligação até dos Estados Unidos. E a vida dela e de Pedro mudou radicalmente. As doações lotaram o barraco. Os armários e a velha geladeira estão abarrotados de comida. Por onde se anda, há pacotes e mais pacotes. As pessoas vão até lá para conhecer o menininho. “De quinta-feira até hoje, mais de 50 pessoas vieram aqui. Nunca tinha visto tanta gente nesse barraco”, ela diz, perplexa. E continua, com sorriso de esperança: “A bateria do celular tem que ser carregada toda hora. Eu já atendi mais de 200 ligações nesses últimos dias”.

Na tarde de ontem, o Correio voltou ao Del Lago. E comprovou a solidariedade das pessoas. Durante a entrevista, o telefone não deu trégua. E as visitas não pararam. Gente de todos os lugares. Do Plano Piloto, de Taguatinga, do Lago, de Brazlândia e ali, de pertinho também. Gente em carro importado. Gente a pé. Gente que se emociona. Que quer abraçar Pedro. Levar uma palavra de conforto para Almira. As histórias são comoventes.

Um empresário de Taguatinga levou o filho de 7 anos para conhecer a realidade do lugar onde Pedro vivia. O menino, ao chegar, não quis descer do carro com ar condicionado. O pai insistiu. E lhe disse: “Venha ver a vida de verdade”. Depois, o homem abraçou Pedro como um pai. “Ele chorou e eu acabei chorando também”, conta Almira, escondendo as lágrimas. O homem deixou a bicicleta, comida, roupas e brinquedos. E foi embora sem olhar para trás. Uma moça da Asa Norte, também portadora do HIV, foi conhecer Pedro. Encantou-se com ele. E falou, em lágrimas: “Eu tenho o mesmo que você. Vamos lutar juntos, viu?”. Pedro a abraçou e prometeu que sim. “Preciso tomar o remédio pra crescer e ficar forte. Minha mãe disse que vou vencer o vírus e ficar bom”, ele acredita. O último exame de carga viral que fez (que indica a quantidade do vírus por ml de sangue) deu bons resultados. Os vírus diminuíram.

Casa nova
O casal Jorge, 43, e Maria das Graças Morais Rodrigues, 44, ambos militares, saiu de Arniqueiras (Águas Claras) e dirigiu o carro até o Condomínio Del Lago. Gastou uma hora para chegar. Junto, eles trouxeram a filha, Natasha, 6 anos. Levaram roupas, brinquedos e mantimentos. Comovida, Maria das Graças observou: “Se ninguém se manifestar, as pessoas morrerão à míngua. Mobilizei meus amigos para essa causa”. Ele emendou: “A força dessa mulher (refere-se a Almira) é impressionante”. Antes de partir, Maria das Graças prometeu: “Eu voltarei, dona Almira”. Engasgada de emoção, Almira apenas balançou a cabeça.

E uma das cenas mais comoventes foi protagonizada pela doméstica Elaine Silva, de 25 anos. Moradora da Fazendinha, perto do Condomínio Del Lago, ela espalhou a história de Pedro dentro do ônibus que pega para chegar à casa onde trabalha, no Lago Sul. Conseguiu sensibilizar as pessoas. Chegou carregando uma sacola abarrotada de alimentos. Tinha feijão, arroz, açúcar, macarrão e até creme dental. “A gente precisa ajudar. Ninguém sabe o dia de amanhã”, observa. Ainda ontem, no início da tarde, um engenheiro de Brasília, em companhia de duas mulheres, visitou aquele barraco. Tirou medidas do lote e estudou a possibilidade de construir uma casa de verdade para a família. “Eu nem acreditei quando ele disse isso”, conta Almira, ainda trêmula.

Para completar a felicidade de Almira, uma de suas filhas e duas netas pequenas, que moram em Pilão Arcado, chegaram para passar uns tempos com ela. “Minha mãe é uma pessoa muito lutadora. Precisa de ajuda”, avalia Dionéia Silva, 30. Almira concorda: “Quando preciso sair, pra buscar os remédios no Plano, não tenho com quem deixar ele (Pedro). Agora, posso ficar despreocupada”.

E por falar em Pedro, onde ele está? Voando, em companhia da molecada, na rua empoeirada, a bordo da sua bicicleta com rodinhas. Virou moleque, de jeito maroto, pés descalços, camisa encardida e bermuda suja de terra. “Olha aí, tio, já sei andar”, ele vibra. Almira não se contém de alegria: “Ele tá tão feliz, como nunca vi antes. Acho que a vida dele tá começando agora”. Pedro continua voando, voando... Essa história também quer recomeçar. A partir de hoje ela será feita de esperança.

Solidariedade

Toda ajuda à família é bem-vinda. Contato com Almira: 9662-0182

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